A Invenção da Heterossexualidade e outros b.o

HybrydA
4 min readFeb 10, 2021

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Esse texto é inspirado em uma aula de Helena Vieira, disponível gratuitamente no youtube, “A invenção da Heterossexualidade”. Ela também ministra um curso chamado História da Sexualidade, o qual já tive a alegria de participar.

[categorias homem e mulher serão utilizadas muitas vezes a partir de um olhar cisgênero, pois o estudo que acessei sobre esse tema ainda não nomeia a transgeneridade]

Nesse curso investigamos a história europeia da sexualidade e de gênero até o momento atual. É importante compreender como essas questões são organizadas pela branquitude, pois elas nos afetam devido a colonização. Um livro interessante para estudar isso é “A Invenção da Heterossexualidade” — Jonathan Ned Katz, que reexamina a distinção básica feita entre homossexual/heterossexual, e a criação de um modo de vida normativo que classifica o primeiro como anormal e ruim e o segundo como normal e bom. O livro mostra de que maneira o conceito de heterossexualidade foi criado social e historicamente, além de analisar a quem interessa essa imposição.

O livro apresenta o início dos estudos “científicos” acerca da sexualidade, numa tentativa de entender as origens dos “desvios”. É curioso que a heterossexualidade como conhecemos hoje não era nomeada, pois não se nomeia o normal, apenas o que difere. A palavra “heterossexualidade” surge em um primeiro momento para falar da bissexualidade, e mais adiante é usada para falar de homens cishetero com formas atípicas de lidar com o seu desejo por mulheres, tipo através de fetiches. Apenas mais pra frente que ela é consolidada como o nome de uma orientação sexual, simplesmente.

Nesse livro são apresentados casos clínicos de homens cis brancos que apresentam desejos sexuais que não estão relacionados ao sexo oposto, à reprodução e ao casamento. Busca-se encontrar a origem desse desejo desviante e aplicar tratamentos para curá-lo. Assim, podemos observar o que Monique Wittig chamou de regime político da heterossexualidade: uma ordem de mundo em que o desejo deve acontecer entre pessoas de sexo oposto (e cisgeneras, claro), com uma ideia de complementariedade homem-mulher/ pênis-vagina e visando o casamento cristão e a constituição de família (reprodução). A busca pela heterossexualidade (que num primeiro momento nem era nomeada assim), não era apenas a busca por uma forma “certa” de desejar, mas a busca por uma ordem de mundo, cishetero, branco e cristão — ordem reforçada até hoje em muitas dimensões.

Essas práticas clínicas vão construindo uma ciência sobre a sexualidade e uma verdade sobre o sexo — sob olhos brancos, masculinos, cisheteros e cristãos. Diversas palavras vão surgindo para nomear o que disside do normal e a prática homossexual começa a ser associada a um sujeito homossexual. O que isso quer dizer? Não é mais sobre uma prática sexual apenas, mas um “modo de ser”. É possível observar isso nos estudos de caso em que ter atitudes “masculinas” são indicadas para curar a homossexualidade. Ex: parar de bordar e sair para se exercitar. Algum semelhança com aqueles discursos de que um rapaz vai virar homossexual porque convive demais com mulheres? Que uma menina é homossexual porque lhe falta “feminilidade” no dia a dia? Ou então o jeito de sapatão e jeito de bicha, como se uma forma de ser necessariamente indicasse uma orientação sexual?

Acho interessante ressaltar como que a sexualidade do homem/corpo com pênis era estudada, ao passo que a mulher/corpo com vulva permanecia ignorada. Era fundamental que o homem performasse a sua masculinidade inteiramente, comendo mulheres e sendo viril, ao passo que os desvios do desejo das mulheres não eram exatamente uma questão, o grande problema era que elas não se casassem e tivessem filhos. Isso não indica opressão em menor grau, apenas relações diferentes com a opressão cisheteronormativa, que considerava a homossexualidade feminina não tão preocupante quanto a sua falta de vontade de ser esposa e mãe. O desejo do corpo com vulva era posto de lado e o fundamental era que exercesse a sua função social de mãe e esposa.

A partir dessas colocações, deixo uma provocação: por que passamos tanto tempo procurando as explicações mais detalhadas para classificar homo, hetero, bi, trans etc? Por que passamos tanto tempo enquanto movimento lgbti+ legitimando ou deslegitimando as existências alheias, como se isso em si já não fosse uma herança de toda essa história de classificar para remediar? Não podemos perder de vista a história por trás dos conceitos — que nem fomos nós que criamos, e sim aqueles que nos consideram anormais.

Contudo, não é sobre o descarte das identidades, pois elas possuem um poder subversivo. Afirmar-se sapatão, bicha, travesti, transmasculino é uma afronta à cisheteronormatividade, que nos quer apenas como doenças a serem curadas. A questão está em tomar a identidade como finalidade e não como estratégia. A identidade não indica uma essência, algo imutável e universal — como invocam pessoas que dizem, por exemplo, que uma lésbica é invariavelmente uma pessoa com vulva que se atrai por outra pessoa com vulva. Nossa existência sempre escapará da nomeação em algum momento, e isso é ótimo. Se pretendemos nos desfazer das imposições da cis-hetero-normatividade, precisamos enquanto movimento defender a fluidez na mesma medida em que lutamos ferozmente para que tenhamos nossos direitos garantidos, independente do lugar para onde fluímos.

É muito importante enunciar quem somos e delinear nossas especificidades, mas também é muito importante entender que somos porque o opressor nos apontou como a diferença.

Não sabemos falar fora da gramática da identidade, afinal, somos seres culturais, repletos de significado e história. Mas, podemos ir criando uma nova gramática, subvertendo, reinventando, dando espaço para relações com o gênero e afeto que não tenham origem branca, nos permitindo a troca com outros mundos.

Referências:

A Invenção Da Heterossexualidade — Jonathan Ned Katz

O regime político da heterossexualidade — Monique Wittig

Curso “História da Sexualidade” com Helena Vieira

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HybrydA

escritos contra-coloniais sobre gênero, afeto, sexualidade e corpo. inspirações ancestrais e feministas/ indígena diaspórica, estudante de psicologia, poliversa