Desidentidade anticolonial y a minha sapatonice poliafetiva

HybrydA
4 min readFeb 19, 2021

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No geral, a imagem da sapatão me acompanha de forma bem próxima. É o que vêm na minha expressão de gênero (e com o que encontro identificação), é o que se reforça quando me relaciono com mulheres, é o que se perguntam quando estou com pessoas de outros gêneros (tem certeza que não é sapatão?). Acho engraçado por que, sim, sou sapatão, e outras coisas também.

Identidade, para mim, é aquela coisa que uso de forma estratégica para driblar os sentidos que a colonialidade me impôs. Ser anticolonial é entender que cada povo tem uma forma de lidar com gênero e sexualidade (ao ponto que essas palavras nem fazem sentido), então por que eu seria preciosista com palavras que se popularizam através de discursos brancos? Por que procurar a fórmula da verdadeira sapatão, quando ela é tão localizada, histórica e social quanto qualquer outra identidade?

Ela é útil pra me enunciar no mundo. Mas também é insuficiente.

Como alguém que teve sua conexão com um povo cortada, muitas palavras e vivências me faltam. Minha vida será um eterno retorno e ao mesmo tempo a construção de algo novo. Convivo com essa ferida colonial. Esse “retorno” tem sido sobre me coletivizar e sobre descobrir novos sentidos pra tudo, inclusive o corpo, o desejo e o afeto.

Então, uso (sim, de forma utilitária, não romântica) as palavras brancas sem jamais abrir mão da minha dimensão não nomeável, pois ela não é inteligível no contexto colonial. Tibira, çacoaimbeguira, dois-espíritos, são muitos os nomes que não conheço bem e poderiam me contemplar mais do que sapatão ou poliafetiva. Sustento o entre-mundos e a ambiguidade, o que venho chamando de desindentidade. Às vezes penso que poderia chamar de não-binariedade/ageneridade mesmo, mas pra essa conversa ainda preciso de tempo.

Tem uma frase que surge às vezes, “o teu posicionamento não tem materialidade”. O que posso responder além de: obviamente! Os lugares que afirmo não têm raízes no movimento lgbti+ e no pensamento branco, que tudo dominam. Curiosamente, em muitos povos pessoas como eu ocupam um lugar muito vinculado ao espiritual. Então, realmente, sou bem pouco material nesse sentido.

Mas a violência é bem palpável. Não apenas nas vidas perdidas em minha ancestralidade e nas vidas que não vivi, mas nas violações que uma sociedade colonial-patriarcal pratica em mim. Circular pela rua, acesso a saúde, suporte e afeto familiar, oportunidade de trabalho e estudo, uma relação de paz com o meu corpo, uma existência independente da decadência capitalista, e tantas outras faltas, que me ferem independentemente da minha narrativa ser considerada legítima ou não.

“Associar ‘sapatão’ a uma performance não-hiperfeminina apaga lésbicas identificadas com a feminilidade, assim como usar ‘sapatão’ se você não se relaciona exclusivamente com mulheres faz com que achem que lésbicas podem ser convertidas”

Desculpe, mas não vou entrar nesse jogo identitário. A palavra sapatão tem sido dobrada, resignificada, expandida de tantos jeitos ao acompanharem as existências de pessoas não-binárias, intersexo, mulheres trans, mulheres identificadas com o masculino ou com o feminino, lésbicas que “não são mulheres, são sapatão”, com pessoas bi/pan/poli que se sentem atravessadas por esse termo e até alguns transmasculinos... Não é a minha existência e a minha tentativa de me narrar que reforça a realidade que nos coloca como dissidência e que impõe a cisheteronormatividade, com todas as suas violências implícitas, inclusive o controle do desejo de mulheres que se relacionam exclusivamente com mulheres.

E, por fim, mas não menos importante, o termo poliafetiva. Pra que serve o poli se existe pan e bi? Por que usar um termo que mal tem história, não se organiza em forma de movimento, ainda por cima trocando o prefixo sexual por afetivo. Bem… Talvez seja essa a intenção mesmo, novamente. Afirmar algo que está fora das palavras e sentidos que me ofereceram, mas não por isso menos presente. Poli significa muitos, mas não todos (ou um todo). Isso expressa muitíssimo bem o que sou, tenho partes de mim no mundo lésbico, bi e pan, e também sou algo além. Tenho partes de mim na não-binariedade e na transgeneridade, sejam pelos meus caminhos anticoloniais ou pelas pessoas que amo. Eu não tenho interesse em delinear o que separa o poli do resto porque o meu ponto é que não existe separação, apesar de singularidades.

Trago o afetivo por que acho mais significativo me pensar a partir das minhas possibilidades de vínculo afetivo do que pelo desejo sexual (até porque me vejo no espectro da assexualidade). Não posso ignorar que os princípios dessas nomeações organizadas ao redor do desejo sexual estão nos incômodos brancos judaico-cristãos, que se ocupam muito de vigiar as práticas sexuais alheias. E, tendo isso em mente, me inspiro no conceito afrocentrado zami, que fala da “mulher que constrói e vive com outra mulher”, e prefiro me pensar a partir daquilo que venho construindo com pessoas (mesmo que seja uma construção onde o sexo é mais presente que qualquer outra coisa), e não a partir das pessoas com quem sou capaz de transar.

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HybrydA

escritos contra-coloniais sobre gênero, afeto, sexualidade e corpo. inspirações ancestrais e feministas/ indígena diaspórica, estudante de psicologia, poliversa