Uma breve reflexão sobre as contribuições de Monique Wittig e o pensamento hetero

HybrydA
4 min readFeb 14, 2021

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Conheci Monique Wittig como um cânone da transfobia organizada (que se oculta sob a palavra feminismo), contudo, curiosamente, quem me apresentou seu trabalho de forma aprofundada foram pessoas trans e não-brancas. Contraditório? Conforme li sua obra, não encontrei conteúdo ativamente transfóbico, mas talvez limitado pelo momento histórico (como toda obra) e que fala sobre a heterossexualidade como um regime que hoje, ao ler, eu identifico como um combo de heterosexismo, cisgeneridade e branquitude. Questiono algumas das suas saídas, uma vez que a anticolonialidade e a reflexão sobre a branquitude não estão presentes na sua obra como acho que é preciso estar para discutir gênero.

Escrevo contra as leituras desonestas que vejo sendo feitas de autoras lésbicas, que distorcem conceitos e consideram sua escrita de forma a-histórica.

E seu texto “O pensamento hetero”, ela fala sobre a “heterossexualidade” (cisheteronorma branca cristã) como uma construção de um mundo, material e simbólico, que silencia a possibilidade de se narrar para além do cistema, que cria a diferença para afirmar-se superior a ela e impõe estruturas binárias e rígidas para o gênero. Ela termina o texto com sua conhecida frase “a lésbica não é uma mulher”, considerando que a categoria mulher só faz sentido dentro do regime político da heterossexualidade (branco-ocidental).

Será a mulher a mesma em todos os contextos? Será sempre uma categoria de opressão? Será que ela existe em todo o mundo?

Fica pro debate.

Passagens do texto “O pensamento hetero”:

“Estes discursos da heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos que falemos nos termos deles. Tudo quanto os põe em questão é imediatamente posto a parte como elementar. A nossa recusa da interpretação totalizante da psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias categorias. Mas a sua ação mais feroz é a implacável tirania que exercem sobre os nossos seres físicos e mentais.

(…)

Não há nada de abstrato acerca do poder que as ciências e as teorias têm de agir materialmente e na realidade sobre os nossos corpos e as nossas mentes, mesmo se é abstrato o discurso que produz esse poder. É uma das formas de domínio, a sua própria expressão. Eu diria, alternativamente, um dos seus exercícios. Todes es oprimides conhecem este poder e têm de lidar com ele. É aquele que diz: não tens o direito de falar porque o teu falar não é científico e não é teórico, estás a um nível errado de análise, estás a confundir discurso e realidade, o teu discurso é ingênuo, compreendes mal esta ou aquela ciência.

(…)

O pensamento hétero desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e simultaneamente de todos os fenômenos subjetivos. Posso apenas sublinhar o caráter opressivo de que se reveste o pensamento hétero na sua tendência para imediatamente universalizar a sua produção de conceitos em leis gerais que se reclamam de ser aplicáveis a todas as sociedades, a todas as épocas, a todos os indivíduos. Assim, fala-se de conceitos como a troca de mulheres, a diferença, entre os sexos, a ordem simbólica, o Inconsciente, Desejo, jouissance, Cultura, História, dando um significado absoluto a estes conceitos, quando são apenas categorias fundadas sobre a heterossexualidade, ou sobre um pensamento que produz a diferença entre os sexos como um dogma político e filosófico.

(…)

A sociedade hétero está baseada na necessidade, a todos os níveis, do diferente/outro. Não pode funcionar economicamente, simbolicamente, linguisticamente ou politicamente sem este conceito. Necessidade do diferente/outro é uma necessidade ontológica para todo o aglomerado de ciências e disciplinas a que chamo o pensamento hétero. Mas o que é o diferente/outro se não a(o) dominada(o)? A sociedade heterossexual é a sociedade que não oprime apenas lésbicas e homossexuais, ela oprime muitos diferentes/outros, oprime todas as mulheres e muitas categorias de homens, todas e todos que estão na posição de serem dominadas(os). Para constituir uma diferença e controlá-la é um “ato de poder, uma vez que é essencialmente um ato normativo. Todos tentam mostrar o outro como diferente, mas nem todos conseguem ter sucesso a fazê-lo. Tem que ser socialmente dominante para se ter sucesso a fazê-lo”.

(…)

Mas para nós não existe semelhante coisa que seja ser-mulher ou ser-homem. “Homem” e “mulher” são conceitos políticos de oposição, e a cópula que dialeticamente os une é, simultaneamente, aquela que irá abolir os homens e mulheres. É a luta de classes entre mulheres e homens que abolirá os homens e as mulheres. Não há nada de ontológico no conceito de diferença. É a única maneira como os senhores interpretam uma situação histórica de domínio. A função da diferença é a de ocultar a todos os níveis os conflitos de interesse, incluindo os conflitos ideológicos.

(…)

Entretanto os conceitos hétero estão minados. O que é a mulher? Pânico, alarme geral para uma defesa ativa. Francamente, este é um problema que as lésbicas não têm por causa de uma mudança de perspectiva, e seria incorreto dizer que as lésbicas se associam, fazem amor, vivem com mulheres, pois “mulher” tem significado apenas em sistemas de pensamento heterossexuais e em sistemas econômicos heterossexuais. As lésbicas não são mulheres.”

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HybrydA

escritos contra-coloniais sobre gênero, afeto, sexualidade e corpo. inspirações ancestrais e feministas/ indígena diaspórica, estudante de psicologia, poliversa