Uma análise anticolonial de “heterossexualidade compulsória e existência lésbica” de adrienne rich

HybrydA
5 min readFeb 14, 2021

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Outra autora que me foi apresentada por vias inesperadas. Sua obra usada de base mais de uma vez em estudos sobre teoria queer que participei. Resolvi então ler por mim mesma e fazer algumas análises de seu texto “Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica”

Rich faz uma análise interessante da estrutura heteropatriarcal e identifica a heterossexualidade compulsória como um sistema que impele mulheres ao casamento, reprodução, submissão. Não é sobre um desejo por homens, mas a propaganda de uma forma de se relacionar e de viver (com eles). Lembra bastante o texto de Monique Wittig, “O Pensamento Hétero”.

O continuum lésbico seria o movimento contrário a um sistema de identificação com o masculino. A identificação entre mulheres, a parceria, que vai além de sexo ou amor, seria um caminho de autonomia(algo como a sororidade). Rich, inclusive, chama de lésbica as mulheres que não se renderam ao casamento e outros domínios heterossexuais, independente de suas práticas sexuais.

Algumas considerações importantes sobre a sua produção: acho que ela se equivoca quando se propõem a ver a opressão da mulher como uma experiência universal — citando inclusive exemplos de outras culturas e raças-etnias que entende como similares à opressão da mulher branca. Contudo, ela reflete, principalmente, sobre mundo onde existe o casamento cristão, com organizações de gênero e sexualidade brancas e ocidentais. Suas ferramentas são, portanto, criadas para esse mundo. Senti que “raça, etnia e cultura” são elaboradas a partir de um olhar que ainda me parece um tanto colonizador, ao propor soluções universais para contextos diferentes, mesmo que próximos em alguns sentidos.

Não é uma obra que expressa consciência de uma necessidade de uma virada epistemológica anticolonial, levando que ela reflita sobre seus problemas de forma mais localizada (sim, eu sei que na época ninguém estava fazendo isso). Rich busca fazer uma virada para gênero, porém ainda parece acreditar que os problemas de gênero são os mesmos em todos os contextos.

Acho importante ressaltar que a visão de Rich é marcadamente cisgênera e monoafetiva, ou seja, descreve um mundo que se divide entre mulher-vulva e homem-pênis, e palavras como bissexualidade estão muito distantes de aparecer. Como citar Rich para invalidar o pensamento trans e afetos monodissidêntes se ela nem ao menos as cita? Isso seria um anacronismo.

Concluo que é uma obra que faz um bom trabalho identificando as estruturas heterossexistas do patriarcado branco e colonial que acontece nos Estados Unidos. Usar o pensamento de Rich de forma universalizante (como vejo acontecendo com frequência) seria algo inlectualmente desonesto e afirmar isso não é um descarte da sua escrita, mas apontar seus limites.

Passagens do texto “heterossexualidade compulsória e existência lésbica”:

Eu queria, sobretudo, que as feministas passassem a achar mais problemático ler, escrever e ensinar a partir de uma perspectiva não examinada de heterocentricidade

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A ideologia do romance heterossexual, irradiada na jovem desde sua mais tenra infância por meio dos contos de fada, da televisão, do cinema, da propaganda, das canções populares e da pompa dos casamentos, é um instrumento já pronto nas mãos do proxeneta, que não hesita mesmo em usá-los

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Em grande medida, a doutrinação prematura das mulheres pelo “amor” como emoção pode ser um conceito ocidental, mas uma ideologia mais universal subentende a primazia e o caráter incontrolável da pulsão sexual masculina.

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o fracasso de examinar a heterossexualidade como uma instituição é o mesmo que fracassar ao admitir que o sistema econômico conhecido como capitalista ou o sistema de casta do racismo são mantidos por uma variedade de forças, incluindo tanto a violência física como a falsa consciência. Tomar passo a favor do questionamento da heterossexualidade como uma “preferência” ou “escolha” das mulheres — e, assim, fazer o trabalho intelectual e emocional que vem a seguir — irá exigir coragem de uma qualidade especial das feministas que se definem como heterossexuais, mas acho que a recompensa será grande: uma libertação do pensamento, a exploração de novos caminhos, a dissolução de outro grande silêncio, uma nova claridade nas relações interpessoais.

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O fracasso de examinar a heterossexualidade como uma instituição é o mesmo que fracassar ao admitir que o sistema econômico conhecido como capitalista ou o sistema de casta do racismo são mantidos por uma variedade de forças, incluindo tanto a violência física como a falsa consciência. Tomar passo a favor do questionamento da heterossexualidade como uma “preferência” ou “escolha” das mulheres — e, assim, fazer o trabalho intelectual e emocional que vem a seguir — irá exigir coragem de uma qualidade especial das feministas que se definem como heterossexuais, mas acho que a recompensa será grande: uma libertação do pensamento, a exploração de novos caminhos, a dissolução de outro grande silêncio, uma nova claridade nas relações interpessoais

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Quando, porém, nós nos aprofundamos e ampliamos o conjunto do que definimos como existência lésbica, quando delineamos um continuum lésbico, começamos a descobrir o erótico em termos femininos: como ele não é confinado a qualquer parte do corpo ou apenas ao corpo em si mesmo; como uma energia não apenas difusa, mas a ser, tal como Audre Lorde chegou a descrever, onipresente no “compartilhamento de alegria, seja física, seja emocional, seja psíquica” e na repartição de trabalho; que o erótico é como a alegria que se fortalece e que “nos faz com menos vontade de aceitar a ausência de poder ou, então, aqueles outros estados adquiridos do ser, que não são nativos para mim, tal como a resignação, o desespero, a depressão e a autonegação”

(…)

Inevitavelmente, a questão surgirá: Estamos, então, a condenar todas as relações heterossexuais, inclusive aquelas que são menos opressivas? Acredito que essa pergunta, embora sentida sempre de modo profundo, seja uma questão equivocada. Estamos inseridos em um labirinto de dicotomias falsas que nos impede de apreender a instituição como um todo: casamentos “bons” versus “maus”; “casamento por amor” versus casamento arranjado; sexo “liberado” versus prostituição; intercurso heterossexual versus estupro;

(…)

Exigirá um entendimento corajoso da política e da economia, além da propaganda cultural da heterossexualidade para, assim, nos guiar para além dos casos individuais e das situações diversificadas de grupo em razão do tipo complexo de abrangência necessária para desfazer o poder que os homens exercem sobre as mulheres em todos os lugares, o poder que se tornou modelar para todas as outras formas de exploração e controle ilegítimo.

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HybrydA

escritos contra-coloniais sobre gênero, afeto, sexualidade e corpo. inspirações ancestrais e feministas/ indígena diaspórica, estudante de psicologia, poliversa